sexta-feira, 18 de maio de 2007

Cap.04 - Ferida

Essas palavras são lâminas cortantes para o meu coração ferido.
- William Shakespeare


Ah, Mulheres, que vocês devessem estar andando,
aqui, entre nós, cheias de lamento, não mais protegidas que nós.
- Rainer Maria Rilke


Carrie acordou no dia do seu sexto aniversário ao som de música.
Ela soube imediatamente que era seu aniversário, seu próprio dia. Abriu os olhos, descobrindo que balões haviam sido colocados ao redor de toda a sua cama – ela estava cercada de cor. A comemoração havia começado. Sua mãe estava de pé ao seu lado, segurando um bolo de café com uma velinha acesa, seu pai estava lá também e os dois estavam cantando “paaarabéeeens praaa vocêeee!” Oh, que alegria perfeita! Ondas de deleite, beijos, abraços, e “vivas!” a receberam neste dia – exatamente como havia acontecido seis anos antes. Seu pai sussurrou para sua “princesinha” que ele a amava. Sua mãe lhe lembrou novamente o quão feliz ela era por ter uma filha tão maravilhosa.
Não havia qualquer dúvida – esta garotinha era apreciada com deleite.
A vida para Carrie era bem próxima da vida que Deus imaginou para cada garotinha. Ela sabia que seu pai a valorizava. Ela era sua princesa. Ele era seu cavaleiro de armadura brilhante. Ele queria estar com ela. Carrie sabia que sua mãe a amava e a queria. Seu, era um mundo onde seu pai a protegia, sua mãe a nutria, e ela era apreciada. Este é o solo onde a alma de uma garota deveria crescer; o jardim onde seu coração deveria florescer. Toda garotinha deveria ser tão amada, são bem-vinda – vista, conhecida, valorizada. À partir daí ela pode se tornar uma mulher forte e confiante.
Ah, se tivesse sido assim com todas nós...

Mães, Pais e Suas filhas

Por muitos séculos as mulheres viveram em forte comunhão com outras mulheres – reunidas ao poço, às margens do rio, preparando refeições – muitas ocasiões para a feminilidade de certa forma passar naturalmente das mulheres mais velhas para as mais jovens. Nossa intuição, nosso olho clínico para relacionamentos, nossa habilidade de apreender questões do coração tornavam desnecessária uma “passagem” formal para a feminilidade. Nos nossos dias, estas oportunidades são quase inexistentes. Quando nós mulheres nos encontramos, costuma ser em situações de muito estresse – reuniões de empresa com prazos, reuniões de ministério com objetivos definidos, reuniões de pais na escola com preocupações. A casa é o único lugar que resta para esta transmissão vital da identidade feminina.
A forma como você se vê agora, já mulher feita, foi moldada na sua vida bem cedo, nos anos quando você era uma garotinha. Aprendemos o que significa ser feminina – e se nós éramos femininas – quando ainda éramos muito jovens. As mulheres aprendem com suas mães o que significa ser mulher e com seus pais o valor que uma mulher tem – o valor que elas têm como mulher. Se uma mulher está confortável com a própria feminilidade, sua beleza, sua força, então há grandes chances de sua filha também ficar.
De nossas mães recebemos muitas, muitas coisas, mas principalmente misericórdia e ternura. Quando meus filhos eram pequenos e se machucavam, o pai deles dizia algo animador como: “que machucado chique”. Já eu, os abraçava e cuidava da ferida. Nossas mães nos mostram a face misericordiosa de Deus. Somos nutridos em seus seios e acalentados em seus braços. Elas nos embalam e cantam canções de ninar. Nossos anos mais jovens são vividos dentro do seu controle e elas cuidam de nós em todos os sentidos da palavra. Quando nos machucamos, as mães nos beijam e nos aliviam.
As mães são algo de mistério para garotas jovens, mas também pertencem a um clube para o qual um dia elas irão entrar. Então as garotinhas assistem e aprendem. Elas aprendem a ser mulheres assistindo suas mães, suas avós e assimilando uma miríade de lições de todas as mulheres adultas de suas vidas.
Mas em relação à nossa Pergunta – esta é principalmente respondida por nosso pai.
O pai de Carrie estava presente para ela. Ele a via, e deixava claro que gostava do que via. Ele derramava afeição sobre ela com sua presença, proteção e deleite. Tinha apelidos para ela – nomes secretos que apenas os dois conheciam. Ele a chamava de “gatinha” e “princesa” e “minha querida”. Garotinhas precisam da força terna de seus pais. Elas precisam saber que seus papais são fortes e irão protegê-las; precisam saber que seus pais estão a seu favor. Acima de tudo, uma garota recebe de seu pai a resposta para a sua Pergunta.
Lembra as saias rodadas? Nós rodávamos na frente de nosso pai. Queríamos saber: “papai, eu sou encantadora? Sou cativante?” com eles, aprendemos que somos apreciadas com prazer, que somos especiais... ou que não somos. A forma como um pai se relaciona com sua filha tem um enorme efeito na alma dela – para o bem ou para o mal. Numerosos estudos mostram que mulheres que relatam um relacionamento próximo e carinhoso com seus pais, que recebem afirmação, apreciação e aprovação durante a infância, sofrem menos de doenças como distúrbios alimentares ou depressão e “desenvolvem um forte senso de identidade pessoal e auto-estima positiva” (Margo Maine, Father Hunger – fome de pai).
Mas Adão caiu, assim como Eva, e os pais e mães que a maioria de nós teve continuaram a triste história. Eles não proveram para nós as coisas que nossos corações precisavam a fim de nos tornarmos mulheres adoráveis, vulneráveis, fortes, aventureiras. Não, a maioria de nossas histórias partilham de um tema diferente.

Corações Feridos

Minha amiga Sandy foi criada em uma casa com um pai abusivo e uma mãe fraca. Se seu pai batesse em sua mãe, sua mãe achava que devia ter feito algo para merecê-lo. Quando os tapas se transformaram em espancamento, Sandy ficou entre os dois. Ela tentava parar as crueldades do pai e proteger a mãe, recebendo ela mesma a agressão. E quando seu pai começou a abusar sexualmente dela e de sua irmã, sua mãe não fez nada para protegê-las; simplesmente virava as costas. O pai de Sandy começou a levar seu amigos bêbados para casa para que eles também pudessem abusar sexualmente das suas filhas. E novamente, sua mãe nada fazia. O que você acha que Sandy aprendeu sobre masculinidade, feminilidade, sobre si mesma?
Tracey era a segunda filha de seus pais e não compartilhava da intimidade fácil que via existir entre seu pai e sua irmã mais velha. Estava incerta sobre si mesma, sobre o sentimento do pai por ela. Numa viagem para um parque aquático, ela queria brincar com ele. Ela lhe pediu que fosse com ela para o tobo-água na área das crianças. Ele não queria. Tracey lhe implorou. Estava com medo de ir sozinha. Queria que ele a pegasse no final do tobo-água. Queria que estivessem juntos. Ele concordou. Ela, exultante, andou de mãos dadas com ele para o tobo-água e ele desceu primeiro, como planejado. Mas era um tobo-água infantil, inapropriado para um adulto, e quando ele chegou no final, a piscina era muito rasa para ele. Chegando muito bruscamente, ele quebrou o pé. Ele estava sentindo dor e a culpa era dela. Foi nisso que seu coraçãozinho acreditou. O que isto ensina a uma criança sobre seus desejos e o efeito que sua vida tem sobre os outros?
Uma mulher que chamaremos de Melissa nos contou: “minha ferida surgiu no meu nascimento. Meus pais tinham uma menina de três anos e queriam desesperadamente um menino.” Você já imagina o que houve. “Levaram-me até meu pai pela primeira vez, e ele nem queria me segurar porque estava tão decepcionado por eu ser uma menina. Eu passei minha infância tentando ser um bom filho e orando todas as noites antes de dormir para que eu pudesse ter um pênis e virar menino. Todas as manhãs, quando eu acordava, eu conferia e chorava porque ainda era menina.” Como gostaríamos de dizer que histórias como essas são raras. A natureza da agressão pode ser diferente, mas a razão pela qual existem tantas mulheres sofrendo é porque houve tantas meninas feridas”.
Rachel teve um pai verbalmente abusivo. “Eu ouvi de tudo que imagino uma menina pode ouvir. ‘Você é burra. Você é inútil. Eu queria que você nunca tivesse nascido. Tenho nojo de você.’ Cresci acreditando que era repulsiva para o meu pai e tentei tudo o que podia para fazer com que ele gostasse de mim.” Pais abusivos são um horror comum demais. Fracas mães cúmplices são uma realidade dolorosa. Ambos costumam vir eles mesmos de famílias abusivas onde o ciclo de dor é repetido e repassado impiedosamente.
Não é possível vivermos muito tempo sem sermos feridas. O sol nasce, as estrelas seguem seu curso, as ondas rebentam sobre as rochas e nós nos ferimos. Corações partidos não podem ser evitados por muito tempo neste mundo lindo, porém perigoso, em que vivemos. Não estamos no Éden. Nem perto. Não estamos vivendo no mundo para o qual nossas almas foram criadas. Algo está errado.
Dê uma boa olhada nos olhos de alguém e atrás do sorriso ou do medo, você encontrará dor. E a maioria das pessoas está sofrendo mais dor do que elas mesmas percebem. O sofrimento não é algo estranho a nenhuma de nós, apesar de poucas terem aprendido que não é nosso inimigo também. Porque somos amadas por Deus, o Rei dos reis, o próprio Jesus, que veio para curar os corações partidos e libertar os cativos, podemos olhar de volta. Podemos segurar Sua mão e lembrar. Precisamos nos lembrar para não permanecermos aprisionadas às feridas e mensagens que recebemos desde crianças.
O horror que pais abusivos infligem em suas filhas ferem suas almas em seu âmago. Parte seus corações, leva à vergonha e insegurança e a uma hoste de estratégias de defesa, mas fecham seus corações femininos. Mas pelo menos a agressão é óbvia. A dor que pais ausentes infligem em suas filhas é danosa também, mas muito mais difícil de se ver.

Pais Passivos

Como eu disse antes, homens caídos tendem a pecar de uma entre duas formas. Eles ou se tornam homens ativos, violentos – sua força se tornando má – ou se tornam passivos, silenciosos (como Adão) – sua força desaparecendo. O pai de Lori estava presente fisicamente, mas ausente em todos os outros sentidos. Uma garotinha deseja ser apreciada pelo pai, mas o pai de Lori não queria ter nada a ver com ela. Quando sua escola primária teve um jantar para pais e filhas, Lori queria ir desesperadamente. Ela convidou o pai; implorou-lhe que fosse com ela, mas ele não ouviu coisa alguma. Lori presumiu que ele estava com vergonha de ser visto com ela.
Como muitas garotinhas, Lori começou a fazer aula de balé. Ela se sentiu tão bonita em seu colante e meia-calça cor-de-rosa que pediu ao pai que fosse vê-la dançar. Ele respondeu que quando ela estivesse num palco de verdade, então ele iria lhe assistir. Como você já deve saber, aulas de dança acabam em recitais, e então, o dia chegou quando Lorinha ia dançar num palco de verdade. Linda, em seu figurino reluzente, ela ansiosamente esperou e vigiou a chegada do pai. Ele não foi. Mais tarde aquela noite, amigos de seu pai tiveram que carregá-lo para dentro de casa porque ele estava bêbado demais para andar sozinho. O coração de criança de Lori acreditou que seu pai fez de tudo para não ter que ir vê-la dançar.
O pai de Debbie teve um caso quando ela era muito jovem. Ele não era um homem violento. Não havia nada de abusivo nele. Na verdade, ele era gentil com sua mãe, assim como com ela e sua irmã. Eles jantavam juntos aos domingos, iam à igreja juntos. No entanto, ele escolheu outra mulher. “Imagino que ela não tenha sido suficiente para mantê-lo,” Debbie disse sobre sua mãe. Então ela deu uma pausa e disse: “Imagino que nós não tenhamos sido suficientes para mantê-lo”. Casos e divórcios atacam no ponto que uma mulher mais teme – abandono. Ferem, não somente as mães, mas as filhas também. A ferida é algumas vezes difícil de identificar porque a agressão parece ser contra a esposa. Mas o que a garota aprende?
O pai de Laurie se divorciou de sua mãe quando ela tinha seis anos de idade. Em seu coração, ela estava se divorciando também. “Eles tentaram conversar sobre o assunto conosco, fazer tudo parecer maduro e garantir que tudo ia ficar bem. Mas ele estava partindo.” Seu pai realmente veio visitá-la, levá-la para sair. Mas ela aprendeu a esconder seu coração dele. “Aprendi a chorar debaixo d´água. Quando íamos para a piscina, eu não queria que ele me visse chorar.” Tantas meninas aprendem algo parecido. Esconda sua vulnerabilidade. Esconda seu coração. Você não está a salvo.
Meu (Stasi) pai esteve ausente na maior parte da minha juventude. Ele era um homem que fora criado para ser forte e bom. Naquela época, a principal forma de um homem mostrar sua força era sendo o provedor da família. Mas como muitos homens, meu pai trabalhava muitas horas por dia para nos sustentar financeiramente, e nos privou do que tinha de mais valioso: ele mesmo. Meu pai era um vendedor viajante. Costumava ficar fora por duas semanas cada vez que saía e ficava em casa somente durante o fim-de-semana, para logo sair de novo. Sendo alcoólatra, sempre parava num bar perto de casa para “tomar uma” antes de entrar em casa. Quando ele estava presente fisicamente, estava ausente emocionalmente, preferindo a companhia da televisão e um copo de “scotch” à sua família. Ele não me conhecia. Imagino que não queria.

Feridas de Mãe

Minha mãe era uma mulher solitária e ocupada. Quando eu era pequena, tinha que fingir estar doente para receber um mínimo de sua atenção. Eu me lembro de estar sentada na cozinha certa vez vendo-a preparar o jantar quando ela me disse pela primeira vez – mas não a última – o quão devastada ela havia ficado quando descobriu que estava grávida de mim. Eu fui a última de quatro filhos, muito próximos em idade, e ela ficou em prantos quando soube que eu, a filha de uma mãe sobrecarregada e um pai ausente estava a caminho. Você pode imaginar o efeito que isto tem no coração de uma garotinha.
O pai de Chris não era ausente. Ele era, na verdade, profundamente envolvido em sua vida. Ela ama cavalos, tinha um dom natural com eles, e ele era muito orgulhoso disso. Ele se deleitava nas habilidades que ela tinha para cavalgar e a encorajava a desenvolvê-las. Ele era presente e apoiador, ele a apreciava imensamente, e ela sabia disso. E sua mãe tinha ciúmes. Ela disse à Chris que seu pai só estava a “usando”. Ela soltou o veneno de que seu pai era cruel, egoísta, e que a atenção que ele lhe dava era errado. A mãe de Chris menosprezava seu amor por cavalos, nunca havia ido a uma aula ou show, e disse à Chris que ela ficava masculina e não atraente em suas roupas de montar.
A mãe de Dana a trancava juntamente com seu irmão e irmãs por horas a fio dentro do armário quando eles eram pequenos. Sua mãe não confiava neles ou em babás, então lhes colocava no armário quando saía. Eles não eram pobres, mas sua mãe comprava a comida mais barata possível, pão dormido, mofado, frutas maduras demais. Sua mãe lhe dava pouca comida, e então a acordava à meia-noite e exigia que ela comesse um pedaço de fruta feia, amassada. Ela tinha vinte e um anos quando ela experimentou sua primeira pêra perfeitamente madura e estranhou o gosto.
As histórias dessas mulheres e das feridas que receberam quando crianças são todas diferentes, mas os efeitos de suas feridas e o efeito das nossas são dolorosamente similares. Algumas dessas histórias são extremos. Os sentimentos de incerteza e inutilidade que elas portam, não. Como foi sua infância? Que lições você aprendeu quando era uma menina? O que seus pais queriam de você? Você era apreciada? Você sabia no âmago do seu ser que era amada, especial, merecedora de proteção, e querida? Eu espero que sim. Mas eu sei que, para muitas de vocês, a infância que vocês deveriam ter tido, a que vocês queriam ter tido, está longe de ser a infância que vocês realmente tiveram.

As Mensagens de nossas Feridas – e Como Elas nos Moldaram

As feridas que recebemos quando crianças não vieram sozinhas. Trouxeram mensagens consigo, mensagens que atingem o âmago do nosso coração, exatamente no lugar de nossa Pergunta. Nossas feridas atacam o cerne de nossa feminilidade. O estrago feito em nossos corações femininos pelas feridas que recebemos, torna-se muito pior com as coisas horríveis que acreditamos sobre nós mesmas como resultado das feridas. Quando crianças, não tínhamos as faculdades necessárias para processar e filtrar o que estava acontecendo conosco. Nossos pais eram deuses. Acreditávamos que estavam certos. Se fôssemos sobrecarregadas ou menosprezadas, machucadas ou abusadas, acreditávamos que, de alguma forma, a culpa era nossa – o problema estava conosco.
O pai de Lori não foi ao seu recital. Ele deu um jeito de não ir. Esta foi a ferida. A mensagem foi que ela não era digna do tempo dele. Não era digna de amor. Ela achou que devia haver algo terrivelmente errado com ela. O pai de Tracey quebrou o pé. Ela o convidou para participar do desejo do seu coração, e o resultado foi um desastre. A mensagem? “Seu desejo por relacionamento gera dor. Você é um prato cheio demais.” E ela passou os últimos vinte anos tentando achar algum jeito de ser amada sem ser demais. E acabou eliminando enormes partes de sua maravilhosa personalidade como resultado.
O pai de Debbie teve um caso. O que deixou tudo confuso foi que, de muitas formas, ele era um bom homem. A mensagem que foi colocada em seu coração de adolescente foi: “você tem que agir muito melhor que isso se quiser manter um homem com você.” Depois disso apareceu um rapaz investindo em Debbie, e partiu sem razão aparente. Nós conhecemos esta linda jovem há muitos anos e uma coisa nos intriga – por que ela está sempre tentando consertar sua vida? Por que ela está sempre tentando “se melhorar”? Debbie está sempre procurando algo para consertar. Mais oração, mais exercícios, mais responsabilidade financeira, uma nova cor de cabelos, mais disciplina. Por que ela está se esforçando tanto? Ela não sabe o quanto é maravilhosa? O que torna sua busca tão frustrante é que ela não sabe o que há de errado com ela. Ela simplesmente teme que ela nunca seja o suficiente.
Muitas mulheres se sentem assim, na verdade. Muitas vezes não o expressamos em palavras, mas no fundo tememos que haja algo de muito errado em nós. Se fôssemos a princesa, então nosso príncipe teria vindo. Se fôssemos a filha de um rei, ele teria lutado por nós. Não podemos evitar acreditar que se fôssemos diferentes, se fôssemos melhores, então teríamos sido amadas como ansiamos. Deve ser nossa culpa.
O pai de Sandy abusou dela e sua mãe virou as costas. Isto produziu um enorme mal em sua alma. Em tudo o que aprendeu, Sandy assimilou duas coisas básicas sobre feminilidade: ser mulher é ser incapaz; não há nada de bom na vulnerabilidade; é simplesmente “fraqueza”. E ser feminina é atrair intimidade indesejada sobre si mesma. Surpreende você que ela não queira ser feminina? Como muitas mulheres molestadas sexualmente, Sandy se encontra na horrível prisão de ansiar por intimidade (ela foi criada para tanto), e, ao mesmo tempo, temer ser atraente para um homem da forma mínima que seja. Ela se contenta com a imagem de “mulher competente e profissional eficiente,” gentil, mas resguardada, nunca muito atraente e nunca, nunca, carente e nunca “fraca”.
Algumas mulheres que sofreram abuso sexual escolhem outro caminho. Ou, talvez mais honestamente, se vêem indo compulsivamente em outra direção. Nunca receberam amor, mas experimentaram um tipo de intimidade através do abuso sexual, e agora se entregam a um homem atrás do outro, esperando curar, de alguma forma, as feridas do sexo criminoso com sexo que tenha amor envolvido.
A mãe de Melissa era uma mulher má que espancava os filhos com um pedaço de pau. “Eu tinha total pânico da minha mãe,” ela confessou. “Ela parecia psicótica e gostava de fazer jogos psicológicos. Na maioria das vezes nós nem sabíamos por que estávamos apanhando. Meu pai não fazia nada. Uma coisa que eu sabia era que, a cada golpe, meu ódio por ela crescia. Ela transformou minha irmã numa frágil massa humana, e eu jurei que ela nunca faria isto comigo. Eu jurei que seria ‘durona’, firme, como uma rocha.” E ela se tornou assim, assim se tornou adulta.
As promessas que fazemos quando crianças são bastante compreensíveis – e muito, muito danosas. Elas desligam nosso coração. São essencialmente um acordo estabelecido com as mensagens de nossas feridas. Funcionam como uma concordância com o veredicto que paira sobre nós. “Tudo bem. Se é assim, então é assim. Vou viver minha vida da seguinte forma...”
Vários anos têm sido necessários para eu poder identificar e entender as feridas e mensagens que moldaram minha vida. Tem sido uma jornada em busca de mais clareza, entendimento e cura. Ontem à noite mesmo, enquanto John e eu conversávamos sobre este capítulo, comecei a enxergar mais claramente qual tem sido a mensagem de minhas feridas. Minha mãe estava se sentindo sobrecarregada com a idéia de mais um filho – eu. A mensagem que ficou em meu coração foi a de que eu era muito; simplesmente minha presença gerava sofrimento e dor. Com um pai que não parecia querer me conhecer ou estar comigo, eu peguei a mensagem: “você não tem uma beleza que me cativa. Você é uma decepção.”
Quando eu era criança, costumava me esconder no armário. Ninguém estava procurando por mim; eu simplesmente me sentia segura lá dentro. Comecei a me esconder assim quando tinha dez anos – o mesmo ano em que minha família desmoronou. Estávamos morando no Kansas em um bairro que era tudo o que um bairro deve ser. Minhas irmãs, meu irmão e eu brincávamos com as crianças da vizinhança. Ninguém tinha cercas na época, tudo era aberto. E a escola era onde desabrochávamos. Eu fui eleita “cidadã do ano.” Minha irmã mais velha foi escolhida para participar de um programa de intercâmbio e ir para a França. Minha outra irmã era a estrela do teatro da escola. Meu irmão era popular e ganhou vários prêmios na escola. Você já pegou a idéia. Estava tudo bem.
E aí, nos mudamos (meu pai foi promovido), e foi como se uma bomba atômica tivesse caído sobre nossa família. Nós tínhamos um grande sistema de apoio no Kansas, maior e mais forte do que sabíamos. Amigos, vizinhos, professores, todos estavam nos mantendo de pé. Quando nos mudamos, não tínhamos mais este apoio e minha família não era forte o suficiente sozinha; caímos como um castelo de cartas. Apesar do meu pai não viajar tanto mais, ele trabalhava por longas horas, muitas vezes saindo de casa antes de acordarmos e voltando depois que já estávamos dormindo. Eu sentia como se ele estivesse sempre numa viagem de negócios longe de casa, quando, na verdade, ele só estava há uma hora de distância. Meu pai era alcoólatra e também bipolar, então, quando estava em casa, eu nunca sabia qual pai ele iria ser momento. Seria o pai alegre ou o irado?
Nossa casa não era mais um refúgio, mas um campo de batalha. Refeições em conjunto muitas vezes acabavam em palavras duras e muitas lágrimas. A bebedeira do meu pai aumentou, juntamente com a dor e o ressentimento da minha mãe. Quando estavam juntos, flechas venenosas voavam pelo ar. Numa tentativa de escapar, meu irmão roubou um carro e tentou voltar para o Kansas, onde a vida era boa. Minha mãe foi ficar na casa dos pais por um tempo, e uma de minhas irmãs fugiu de casa. Uma noite, saí com meu pai para jantar. Ele bebeu demais e começou a paquerar a garçonete, pedindo o telefone dela. Foi demais para o meu coração jovem e solitário. Voltando pra casa, engoli todos os comprimidos que achei fossem suficientes para acabar com minha vida e minha dor. Acordei na manhã seguinte, grata por não ter morrido, mas perfeitamente consciente de que meu mundo não era seguro mais.
Então, fiz uma promessa. Em algum lugar no meu coração, sem nem mesmo perceber que eu estava fazendo, ou mesmo colocar em palavras, eu jurei me proteger, nunca gerando nenhuma dor, nunca pedindo atenção. Meu trabalho em casa era ser invisível, não causar turbulência. Se eu causasse qualquer problema, com certeza o navio afundaria. Então eu comecei a me esconder. Escondi minhas necessidades, meus desejos, meu próprio coração. Escondi meu verdadeiro eu. E quando tudo estava demais, eu me escondia no armário.
Adiante quatorze anos. Estou agora recém-casada com um homem forte e direto, que não tem medo de confronto, até gosta. Nós costumávamos nos sentar à mesa da cozinha e se a conversa ficasse tensa, eu sumia de lá. Ele ia me procurar. “Stasi, onde está você?” Onde eu estava? Estava escondida no armário. Literalmente.
Eu ficava com vergonha do meu comportamento infantil, me sentia idiota com minha aparente incapacidade de tratar de forma madura uma divergência de opiniões. Mas eu nunca tinha visto isso, não sabia como fazer. O menor desapontamento que o John tivesse com algo que eu tivesse feito destruía meu coração ferido. Levou muitos, muitos meses para o amor e afirmação do John começarem a penetrar meu coração assustado. Ainda me lembro da primeira vez que tivemos um desentendimento e eu consegui continuar no quarto com ele. Tive que usar toda a minha força de vontade para manter um pé no quarto, enquanto o outro apontava para o banheiro pronto para correr em busca de segurança. Foi uma virada. Nunca mais me escondi daquela forma de novo.
No entanto, comecei a engordar mais rapidamente do que você imaginaria ser possível. Inconscientemente, eu tinha encontrado uma nova maneira de me esconder. Eu temia desde o início do meu casamento que no fundo eu fosse – e sempre seria – um desapontamento para o John; que era simplesmente uma questão de tempo até ele perceber. (A mensagem da minha ferida). A garotinha ferida no meu interior achava que era melhor fugir. E minha fuga, assim como a sua, tornou as coisas muito, muito piores. John e eu tivemos muitos anos de dor. Como Jesus disse, aquela que tenta ganhar a sua vida, a perderá (Mt. 16:25). As promessas e as coisas que fazemos como resultados de nossas feridas apenas pioram as questões.

Feminilidade Ferida

Como resultado das feridas que recebemos quando crianças, passamos a acreditar que alguma parte de nós, talvez todas as partes, está marcada. A vergonha entra em cena e faz sua casa no profundo do nosso coração. É a vergonha que nos faz desviar o olhar, então nós evitamos olhar nos olhos de estranhos e amigos. É vergonha aquele sentimento que nos assombra, a sensação de que se alguém realmente nos conhecesse, balançariam a cabeça com desdém e iriam embora. A vergonha nos faz sentir, não, acreditar que nós não atendemos às expectativas – não nos padrões do mundo, ou da igreja, ou nossos próprios.
Outros parecem ter sua vida sob controle, mas a vergonha captura nosso coração e o segura, sempre pronta para apontar nossas falhas e julgar nosso valor. Estamos incompletas. Sabemos que não somos tudo o que ansiamos ser, tudo o que Deus anseia que sejamos, mas ao invés de nos levantarmos, indo em busca do ar cheio-de-graça e perguntarmos a Deus o que Ele pensa de nós, a vergonha nos mantém presas e sufocadas, acreditando que merecemos morrer asfixiadas. Se não fomos consideradas dignas de amor quando crianças, é incrivelmente difícil acreditar que o somos agora, já adultas. A vergonha diz que somos indignas, quebradas, sem conserto.
A vergonha nos leva a nos escondermos. Temos medo de sermos verdadeiramente vistas, então escondemos nosso eu real e apenas oferecemos o que cremos ser desejado. Se somos o tipo da mulher dominadora, oferecemos nossa “opinião”. Se somos o tipo solitário de mulher, oferecemos nosso “serviço”. Ficamos em silêncio e não dizemos o que vemos ou sabemos quando é diferente do que os outros estão dizendo, porque pensamos que devemos estar erradas. Recusamo-nos a colocar nossas vidas, quem Deus nos fez pra sermos, diante dos outros por medo de rejeição.
A vergonha nos faz sentir muito desconfortáveis com nossa beleza. As mulheres são lindas, cada uma de nós. É uma das gloriosas formas com que portamos a imagem de Deus. Mas poucas de nós acreditamos que somos lindas, e menos ainda se mantém confortáveis com a própria beleza. Nós ou achamos que não possuímos nenhuma beleza ou se possuímos, achamos que é perigosa e má. Então escondemos nossa beleza atrás de peso extra e camadas de maquiagem desnecessária. Ou neutralizamos nossa beleza, levantando paredes protetoras, defensivas, que avisam os outros que mantenham distância.

Uma Aliança Má

Com os anos, passamos a enxergar que a única coisa mais trágica do que as coisas que aconteceram conosco é o que fizemos com elas.
Palavras foram ditas, palavras dolorosas. Coisas foram feitas, coisas horríveis. E elas nos moldaram. Algo por dentro está trocado. Abraçamos as mensagens das feridas. Aceitamos a visão distorcida de nós mesmas. E à partir daí escolhemos um jeito de nos relacionarmos com o nosso mundo. Fazemos um voto de nunca mais estarmos naquela posição. Adotamos estratégias para nos proteger de sermos feridas de novo. Uma mulher que está vivendo com um coração partido, ferido, é uma mulher que está vivendo uma vida de auto-proteção. Ela pode até não estar ciente disso, mas é a verdade. É nosso jeito de tentarmos “nos salvar”.
Também desenvolvemos formas de tentar conseguir alguma coisa do amor pelo qual nosso coração clama. A dor está lá. Nossa necessidade desesperada de amor e afirmação, nossa sede de algum romance e aventura e beleza estão lá. Então nos voltamos para meninos, ou comida, ou estórias de romance; perdemos-nos em nosso trabalho ou na igreja ou em algum tipo de serviço. Tudo isto se soma à mulher que somos hoje. Muito do que chamamos de nossa “personalidade” é na verdade o mosaico das nossas escolhas por auto-proteção mais nosso plano de conseguir alguma coisa do amor para o qual fomos criadas.
O problema é que nosso plano não tem nada a ver com Deus.
As feridas que recebemos e as mensagens que elas trouxeram formaram uma espécie de aliança má com nossa natureza caída de mulheres. De Eva nós recebemos uma profunda desconfiança sobre o coração de Deus em relação a nós. Claramente, Ele está retendo algo de nós. Apenas teremos que nos adaptar para termos a vida que queremos. Controlaremos nosso mundo. Mas há também uma dor interna profunda, uma dor que clama por intimidade e vida. Teremos que achar um jeito de atendê-la. Um jeito que não requer que confiemos em ninguém, especialmente Deus. Um jeito que não irá requerer vulnerabilidade.
De certa forma, esta é a história de toda garotinha, aqui neste mundo a leste do Éden.Mas as feridas não param quando crescemos. Algumas das feridas mais danosas e destrutivas que recebemos aparecem bem mais tarde em nossa vida. As feridas que recebemos durante nossa vida não vieram do nada. Há, na verdade, um tema para elas, um padrão. As feridas que você recebeu chegaram a você com um propósito de alguém que sabe tudo o que você foi criada para ser e tem medo de você.

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